A Nepótica Dieta Nacional do Japão

Boletim Brasil & Oriente
5 min readFeb 21, 2023

--

Issei Kato/Reuters

Uma das partes mais interessantes do estudo da formação de Estados nacionais na nossa era é compreender os processos geopolíticos e econômicos que causaram a fragmentação ou incorporação geográfica de unidades políticas, além da estruturação de um poder centralizado. Nesse sentido, nepotismo não é uma prática exclusiva de uma ou outra nação, e sim um fenômeno que pode ser notado em diversos processos políticos e econômicos.

Na história milenar dos atuais Estados nacionais que compõem o Leste Asiático, a prática nepótica é um fator consistente na estrutura organizacional dessas sociedades. No entanto, o Japão possui uma particularidade sistêmica se comparada com as outras nações do extremo Oriente: nepotismo é tratado como uma característica do sistema político japonês.

Historicamente, a estrutura de poder no país insular se deu por clãs imperiais dinásticos. Do fim do período Heian (794-1185) até a Restauração Meiji (1868-1912), o poder político da família imperial é minado e reduzido a um papel secundário, em decorrência da ascensão do sistema de xogunatos. Famílias que não pertenciam à nobreza e à classe de samurais disputaram o poder político enquanto o Japão passava pela descentralização de poder entre os daimyos (senhores de grandes terras hereditárias). Após anos de desgaste da antiga ordem feudal japonesa, extingue-se o sistema de xogunato com a centralização política no poder imperial e, em 1868, inicia-se a Restauração Meiji. Esse movimento viria a levar o Japão em um rápido processo de transição do feudalismo para o capitalismo industrial através de uma série de reformas econômicas, sociais e políticas implementadas para modernizar a nação que se isolara do mundo durante cerca de 250 anos.

Na Era Meiji, a dominação hereditária pela classe militar dos xoguns foi desfeita e a dinastia imperial retomou o poder. O Imperador criou a Dieta Imperial do Japão (Poder Legislativo japonês) e as dinastias políticas seguiram existindo mesmo após a abolição do sistema de castas das 4 classes japonesas. Nesse período, a economia japonesa foi dominada pelos famosos zaibatsu, os grandes conglomerados empresariais que controlavam setores estratégicos da economia. Esses conglomerados eram estruturas empresariais familiares e foram centrais na industrialização japonesa até que fossem extintos pela ocupação das forças aliadas após a derrota na Segunda Guerra Mundial.

Com a nova Constituição japonesa, formulada e tutelada pelos EUA e pelas forças aliadas em 1946 após a derrota na Guerra, a Dieta Imperial foi substituída pela Dieta Nacional, que passou por reformas. O Legislativo japonês acumula poderes orçamentários, sob tratados internacionais e também é o órgão responsável pela eleição do primeiro-ministro do Japão. A Dieta Nacional é dividida em duas câmaras, sendo elas a Câmara dos Representantes, que predomina sobre a Câmara dos Conselheiros. Mesmo após a reforma da Constituição democrática, boa parte do sistema político japonês segue sendo composto por políticos legatários. Em 2023, a Câmara dos Representantes conta com 465 membros, enquanto a Câmara dos Conselheiros possui 248 membros. As eleições para ambas as câmaras se dão tanto pelo assento-único por distrito geográfico, quanto pela representação proporcional, que permite a escolha por parte dos eleitos pelo assento-único.

O sistema parlamentarista japonês possui mecanismos particulares e se diferencia de outras democracias por possuir mais de 25% dos parlamentares como pertencentes a assentos legatários, ou seja, mais 1⁄4 dos membros da Dieta Nacional é composto por membros hereditários. Outras nações parlamentaristas como EUA e Coreia do Sul possuem cerca de 8% de assentos legatários. A manutenção dessa prática no sistema japonês é vantajosa para os partidos políticos e seus membros, pois, além de conferir um assento seguro e uma maior influência na Dieta, ela permite uma certa estabilidade nas relações entre parlamentares com outros setores sociais de interesse, construídas durante gerações. Como consequência, nepotismo é uma característica marcante no sistema japonês e confere um certo conforto aos partidos políticos por dar como “certo” blocos de alianças e alinhamento político.

No entanto, a prática não escapa à crítica da sociedade japonesa. Em outubro de 2022, o filho mais velho do Primeiro-Ministro Fumio Kishida foi nomeado pelo pai para ocupar o cargo de secretário executivo do primeiro-ministro. Shotaro Kishida, de 31 anos, assume um cargo de relevância no governo atual que o coloca em contato direto com o nível mais alto político do país junto ao seu pai. A nomeação mais uma vez levantou críticas da população por perpetuar um sistema de dinastias políticas e despertou a atenção da mídia japonesa, visto que Fumio Kishida e seu governo tem se envolvido em polêmicas que afetam a aprovação pública da atual gestão. Pouco tempo após ocupar o cargo, Shotaro envolveu a família Kishida e seu governo em um escândalo por ter utilizado veículos oficiais e ter comprado lembranças em shoppings para outros parlamentares durante viagens oficiais do primeiro-ministro a Paris, Ottawa e Londres em janeiro de 2023.

A polêmica envolvendo a família Kishida não é a primeira envolvendo familiares de primeiros-ministros nomeados para cargos no governo. Shinzo Abe, o polêmico e famoso primeiro-ministro assassinado em 2022, era neto de Nobusuke Kishi, ex-primeiro-ministro do Império do Japão, e foi nomeado secretário pessoal de seu pai, Shintaro Abe, ex-Ministro das Relações Exteriores. Shinzo ainda se envolveu em um escândalo em 2018. Outro caso a ser citado é o de Tatsuo Fukuda, filho mais velho do ex-primeiro-ministro Yasuo Fukuda. Tatsuo, que, por sua vez, fora nomeado secretário executivo de seu pai, assumiu o assento na Câmara dos Representantes quando seu pai se aposentou.

Além dos casos mencionados acima, muitos outros envolvendo diferentes cargos acontecem com frequência na nação insular. Nepotismo é uma prática “engessada” no sistema parlamentarista do Japão. Porém, muitas dinastias japonesas, chinesas e coreanas ao longo da história foram removidas do poder, pois certos fatores não são hereditários, como a capacidade política.

Por Rodrigo Santoro
Editado por Lívia Winkler
Revisado por Jéssica Guerra

Fontes:
Estrutura Governamental. Embaixada do Japão no Brasil. Disponível em: <https://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/estruturagovernamental.html>. Acesso em: 12 fev. 2023

Hereditary Politics in Japan: A Family Business. Disponível em: <https://thediplomat.com/2017/02/hereditary-politics-in-japan-a-family-business/>. Acesso em: 15 fev. 2023.
Kishida administration defends appointment of prime minister's son as senior aide. Japan Times. Disponível em: <https://www.japantimes.co.jp/news/2022/10/04/national/politics-diplomacy/kishida-promotes-eldest-son-senior-aide-sparking-talk-succession-plans/>. Acesso em: 12 fev. 2023.

Nepotism and Japan's political dynasties. Japan Times. Disponível em: <https://www.japantimes.co.jp/opinion/2022/10/12/commentary/japan-commentary/kishidas-son-appointment/>. Acesso em: 12 fev. 2023.

NINIVAGGI, G. Shotaro Kishida scandal puts focus on policy affairs secretary role. Disponível em: <https://www.japantimes.co.jp/news/2023/02/06/national/politics-diplomacy/shotaro-kishida-political-secretaries/>. Acesso em: 17 fev. 2023.

Premiê do Japão sofre pressão devido a escândalo de nepotismo. R7 Internacional. Disponível em: <https://noticias.r7.com/internacional/premie-do-japao-sofre-pressao-devido-a-escandalo-de-nepotismo-12032018>. Acesso em: 14 fev. 2023.

UNZER, Emiliano. História Da Ásia. Amazon, 2019. E-book.

YONEKURA, Seiichiro; SHIMIZU, Hiroshi. Empreendedorismo no Japão antes da Segunda Guerra Mundial: o papel e lógica dos zaibatsu. In: LANDES, David S. et al. A Origem das Corporações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, capítulo 17.

--

--

Boletim Brasil & Oriente

Boletim de análises pautadas nas relações exteriores entre a República Federativa do Brasil e países do Oriente.